O Mar Não Se Esquece

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O mar foi testemunha de muitas histórias protagonizadas pela humanidade. O ser humano sempre teve um fascínio pelo mar e de seus mistérios. Suas histórias sempre se cruzaram entre as boas e as sombrias, como o tráfico de escravos africanos. Entre 1514 e 1866, o Oceano Atlântico foi a principal via de transporte de navios negreiros. O Olhar Oceanográfico vem mostrar os impactos que o tráfico de africanos escravizados trouxe para a humanidade e o Oceano Atlântico.

Ilustração de como seria o navio transportador de africanos escravizados pelo atlântico. Fonte: https://www.nationalgeographic.pt/historia/uma-mergulhadora-procura-as-historias-daqueles-que-se-perderam-nos-navios-negreiros_3285

O comércio de escravos já era uma prática entre os povos africanos. Porém, com a chegada dos portugueses ao continente africano, a situação escravagista começou a se tornar de grandes proporções pois os povos europeus necessitavam de mão de obra para as suas colônias. Assim acharam um meio de lucrar com isso, capturando, vendendo e transportando os africanos cativos. O transporte se dava pelos navios que receberam o nome de “navios negreiros”. As condições sanitárias desses navios eram as piores possíveis. Sem comida e água suficientes, de modo que os aprisionados eram tratados pior do que gado.

Ilustração de um navio negreiro jogando os africanos doentes ao mar.  Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/geral-55333175

A falta de higiene provocava muitas doenças e mortes nesses navios. Quando os escravos ficavam doentes e morriam, eram jogados ao mar. O desastre mais emblemático desses navios, foi registrado em 1781, no navio Zong. Os registros históricos mostram que o navio Zong jogou ao mar cerca de 132 africanos, mortos ou ainda vivos, mas doentes.

Esculturas feitas pelo artista Jason de Caires Taylor. As esculturas fazem a alusões a dois eventos trágicos no atlântico. O Trafico de escravos nos séculos XVI e XIX, e o transporte ilegal de refugiados no século XXI. Fonte: http://revistamarina.com.br/index.php/2015/05/no-caribe-uma-homenagem-as-vitimas-do.html

De acordo com Laurentino Gomes, pesquisador e repórter, o horror desse “descarte humano” no Oceano Atlântico modificou os hábitos alimentares dos tubarões.

saíram da África 12 milhões e meio de seres humanos. Chegaram 10 milhões e 700 mil. Morreram na travessia 1 milhão e 800 mil pessoas. Se dividir isso pelo número de dia, dá 14 cadáveres, em média lançados ao mar todos os dias ao longo de 350 anos. Um número tão alto que, segundo depoimentos da época, isso mudou o comportamento dos cardumes de tubarões no oceano Atlântico, que passaram a seguir os navios negreiros.”

Pintura representativa dos botes com africanos amarrados que eram jogados ao mar como isca de tubarões. Fonte:    https://www.geledes.org.br/na-barriga-do-peixe-grande/?amp=1

Os escravizados que conseguiam chegar a terra firme nas Américas eram comercializados. Porém, os que chegavam doentes e à beira da morte eram enterrados nas praias e proximidades. Isso levou uma equipe de pesquisadores, mergulhadores e oceanógrafos a se reunir em busca desses vestígios ao longo do litoral do novo mundo. Em 2008, o projeto Slave Wrecks iniciou uma campanha de pesquisas intensas sobre o passado dos navios negreiros. A mergulhadora e historiadora Tara Roberts trabalhou com sua equipe nas buscas do navio Zong e de outros navios, desvendando o passado sombrio de nossos ancestrais.

Pintora demonstrativa de como era o Cais do Valongo no século XVI e XIX. Fonte: https://idg.org.br/pt-br/cais-do-valongo

Na Ilha de Manhattan (EUA), na Jamaica e no Rio de Janeiro (Brasil), foram os principais portos de desembarque desses navios negreiros. Ao redor desses portos haviam cemitérios de escravos, visto que até hoje ocorrem descobertas de ossadas nas regiões.  Um exemplo é o Cais do Valongo, no Porto Maravilha- Rio de Janeiro. A antiga Praia do Valongo hoje se tornou um sítio arqueológico. Os africanos que ali chegavam, mortos ou doentes, eram enterrados em frente à igreja de Santa Rita, hoje Praça XV.

Ossada de escravos enterrados clandestinamente encontrada em São Tomé. Fonte: https://j3news.com/2020/06/08/arqueologia-do-trafico-negreiro/

Com o passar do tempo esse passado sombrio foi sendo esquecido pouco a pouco. O resgate dessa memória torna-se uma questão humanitária para que o reconhecimento evite horrores futuros. Recentemente, em São Tomé, no Rio de Janeiro o aumento das ressacas erodiu a faixa de areia, trazendo à tona os cadáveres de um cemitério clandestino de africanos escravizados. Foi criado ao redor da praia um sítio arqueológico para realizar mais escavações e pesquisas no local. O que o homem tentou encobrir, a natureza traz à tona.

Arqueólogos nas areia de São Tomé fazendo escavações das ossadas. Fonte: https://j3news.com/2020/06/08/arqueologia-do-trafico-negreiro/

Por mais de 300 anos, o Oceano Atlântico foi a principal rota dos navios negreiros, alterando até mesmo a rotina natural da fauna oceânica. Um prejuízo histórico e ambiental que a humanidade carregará como consequência de seus atos criminosos. O passado que o homem tentou esquecer, o oceano traz de volta à memória no presente, para que as futuras gerações não cometam os mesmos erros.

Esculturas feitas pelo artista Jason de Caires Taylor. As esculturas fazem a alusões a dois eventos trágicos no atlântico. O Trafico de escravos nos séculos XVI e XIX, e o transporte ilegal de refugiados no século XXI. Fonte: http://revistamarina.com.br/index.php/2015/05/no-caribe-uma-homenagem-as-vitimas-do.html

Escrito por: Thais F. Posse

Referências bibliográficas:

J3 NEWS. Arqueologia do tráfico negreiro. J3 News, 2020. Disponível em: <https://j3news.com/2020/06/08/arqueologia-do-trafico-negreiro/>. Acesso em: 13 de maio de 2024.

BBC. Como o tráfico negreiro ao Brasil ficou restrito a uma única cidade africana. BBC News Brasil, 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-55333175>. Acesso em: 20 de maio de 2024.

NATIONAL GEOGRAPHIC. Uma mergulhadora procura as histórias daqueles que se perderam nos navios negreiros. National Geographic Portugal, 2020. Disponível em: <https://www.nationalgeographic.pt/historia/uma-mergulhadora-procura-as-historias-daqueles-que-se-perderam-nos-navios-negreiros_3285>. Acesso em: 20 de maio de 2024.

IDG. Cais do Valongo. Instituto de Desenvolvimento e Gestão, 2020. Disponível em: <https://idg.org.br/pt-br/cais-do-valongo>. Acesso em: 22 de maio de 2024.

GSHOW. Descarte de escravos no mar mudou hábito dos tubarões, revela autor de livro sobre a escravidão. Conversa com Bial, 2020. Disponível em: <https://gshow.globo.com/programas/conversa-com-bial/noticia/descarte-de-escravos-no-mar-mudou-habito-dos-tubaroes-revela-autor-de-livro-sobre-a-escravidao.ghtml>. Acesso em: 22 de maio de 2024.

EPOCH TIMES. African Burial Ground in New York City to reopen. The Epoch Times, 2020. Disponível em: <https://www.theepochtimes.com/article/african-burial-ground-in-new-york-city-to-reopen-1481731>. Acesso em: 22 de maio de 2024.

NYPAP. African Burial Ground. New York Preservation Archive Project, s.d. Disponível em: <https://www.nypap.org/preservation-history/african-burial-ground/>. Acesso em: 22 de maio de 2024.

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