A Guanabara
A Baía de Guanabara está localizada no estado do Rio de Janeiro e é um estuário, ou seja, um ambiente de mistura entre água doce e água salgada. Essa baía, que é a segunda maior do Brasil, está diretamente ligada à história da cidade e do estado do Rio de Janeiro, tendo ainda hoje grande importância histórica, cultural, econômica e ambiental. Contudo, as cidades do seu entorno cresceram e se desenvolveram, em grande parte, às custas da saúde da baía, que hoje é mais conhecida pela poluição do que pelas belezas naturais.
Apesar de sofrer diversas agressões ambientais, a Guanabara ainda se mantém viva devido a algumas características que favorecem a troca periódica de suas águas. Uma delas é a presença de um canal, com profundidade que ultrapassa os 50 metros em alguns pontos e que se estende desde a entrada da baía até o entorno da Ilha de Paquetá (veja as áreas em verde, amarelo e vermelho na Imagem 1). A presença desse canal permite que as águas limpas do Oceano Atlântico entrem e circulem pelo seu interior, renovando as águas poluídas da baía.
O tempo médio para a renovação de 50% das águas da Baía de Guanabara foi estimado em cerca de 12 dias, o que explica a qualidade relativamente boa da água na porção mais próxima do oceano (AMADOR, 2002 apud ALENCAR, 2016). Já na região interior, o processo de renovação é mais lento e o volume de poluentes lançados pelos rios é muito maior, resultando na má qualidade das águas. O fator que causa e agrava cada vez mais a má circulação de água na baía é pouco percebido e decorre do assoreamento que cresce silenciosamente na porção interior da Baía de Guanabara. Por não ganhar a devida atenção, este processo sufoca o espelho d’água pela má circulação e compromete a qualidade ambiental deste estuário.
O que é assoreamento? Causas e efeitos.
O assoreamento é o processo que torna a baía cada vez mais rasa pela deposição de sedimentos e resíduos urbanos, afetando a circulação de água no fundo da baía e fazendo com que algumas regiões não consigam realizar as trocas hídricas com a devida eficiência, criando zonas mortas. Esse processo não é exclusivamente causado por atividades humanas, mas pode ser enormemente amplificado por elas. O assoreamento acontece de maneira natural por conta do acúmulo de sedimentos levados pelos muitos rios que drenam a região hidrográfica da Baía de Guanabara. Ou seja, os rios que deságuam na baía levam até ela sedimentos que se depositam no leito da baía. A taxa de assoreamento natural da baía é de 0,19 cm/ano, ou 19 cm por século. Entretanto, as atividades humanas, especialmente a partir do início do século XX, aceleraram muito o processo de assoreamento, com alguns locais alcançando de 1 a até 4 cm por ano. (AMADOR, 1980 apud BATISTA FILHO et al.,2020).
Dessa forma, a baía sofre um “envelhecimento precoce”, uma vez que os sedimentos que deveriam ser depositados em um século estão sendo depositados em um ano. Entre as ações humanas que agravam esse quadro podemos destacar o desmatamento, a poluição dos rios e a alteração no seu curso natural assim como os aterramentos associados à expansão urbana e industrial.
Poluição: como o esgoto influencia o assoreamento?
O crescimento populacional e a expansão urbana e industrial no entorno da baía aconteceram de forma desordenada, em um ritmo e volume muito maior do que o meio ambiente é capaz de suportar. (Nessa região) Na bacia drenante da Baía de Guanabara estão concentrados 2/3 de toda a população do estado do Rio de Janeiro, o que equivale a cerca de 11 milhões de pessoas, segundo relatório de 2014 do Instituto Trata Brasil. Além disso, a área abriga mais de 12 mil indústrias, incluindo uma refinaria de petróleo, um porto de importância nacional e é utilizada também como ponto de apoio à indústria de óleo e gás (ALENCAR, 2016). Infelizmente, todo esse avanço cobrou um preço alto, uma vez que os serviços de saneamento básico, por exemplo, não acompanharam nem de longe o crescimento populacional.
No lodo do fundo da Baía é possível encontrar grandes concentrações de micro plástico e metais pesados, mas falando de assoreamento, o poluente que mais contribui é o esgoto. Toda a matéria orgânica lançada em forma de esgoto nas dezenas de rios da região é carreada para a baía e se decompõe, depositando-se no leito da baía na forma do lodo pútrido encontrado em muitos locais do estuário. Além disso, o esgoto serve de alimento para microalgas, que se proliferam muito devido à disponibilidade de nutrientes e, ao morrerem, também integram o lodo que vai para o fundo.
Foram implementados diversos projetos para melhorar o saneamento básico dos municípios da região. O maior deles foi o PDBG (Plano de Despoluição da Baía de Guanabara), que reformou e construiu 8 estações de tratamento de esgoto (ETE). Entretanto, essas estações só tratam de fato 43% do que foi planejado, sendo despejados na baía cerca de 18.000 litros de esgoto não tratado por segundo através dos rios (ALENCAR; SCHMIDT, 2014 apud ALENCAR 2016).
Alteração no curso dos rios e o desmatamento das suas margens
Os rios do estado do Rio de Janeiro já foram importantes vias de navegação, principalmente para o transporte de mercadorias e produtos agrícolas, com destaque para o entorno da Baía de Guanabara. Entretanto, com a urbanização da região, grande parte desses rios foi completamente descaracterizada e degradada. O curso natural dos rios foi alterado, sofrendo retificações, canalizações, drenagens e aterramentos (RIO-ÁGUAS, 2020). Somada a essas profundas alterações físicas, a utilização dos rios como valão de esgoto contribui diretamente para o assoreamento dos próprios rios e, consequentemente, da baía para onde eles drenam.
Outro fator que propicia o assoreamento é o desmatamento das margens dos rios. A cobertura vegetal das margens é essencial para sustentar o solo, diminuindo a quantidade de sedimentos que a força da água consegue arrastar. Com a retirada da vegetação próxima aos rios e a mudança no curso natural dos mesmos, eles vão “devorando” as margens e levando todo esse sedimento para a Guanabara.
Dessa forma, o dano ambiental causado pelo desmatamento dos manguezais e matas ciliares no entorno dos rios da região foi intenso. Enquanto a área coberta por manguezais no início do século XVI era estimada em 261,9 Km2, em 2020 essa área se limitava a 81,1 Km2 (PIRES, 2010 apud ALENCAR 2016).
O desmatamento ocorreu por diferentes motivos e em diferentes momentos históricos, podendo-se destacar a retirada para dar lugar a plantações, à construção, e a extração da madeira do mangue para abastecer as fábricas de telhas (olarias) e as fábricas de cal (caieiras) durante boa parte do Brasil colônia.
Além do sedimento retirado por erosão das margens, soma-se toda a carga de resíduos domésticos e industriais lançados nos rios pelas 16 cidades do Grande Rio que estão assentadas na região hidrográfica da Baía de Guanabara. Os resíduos orgânicos, como o esgoto, se deterioram, se acumulam, e compõem o lodo que se deposita no fundo da baía.
Aterros
A maior parte das áreas aterradas no entorno da Baía foram para tornar possível a expansão urbana, como a construção de imóveis, rodovias e aeroportos. Assim a cidade foi avançando para dentro do mar, e calcula-se que em menos de 80 anos o espelho d’água da Baía de Guanabara tenha sido reduzido em 22 Km² (FERNANDES et al., 2020), interferindo diretamente na circulação de água em alguns trechos da baía.
As alterações na orla da Baía de Guanabara foram tão profundas que alguns fatos históricos causam espanto a muitos cariocas. Diversas praias e enseadas, hoje extintas, se espalhavam por boa parte da zona norte carioca e na baixada fluminense. Entre os bairros de Olaria e Penha, por exemplo, em uma área atualmente distante do mar, havia um porto importante para a região, por onde escoava mercadorias e hortaliças. Era o porto de Maria Angú (CORRÊA e VIEIRA, 2016).
Outro exemplo também emblemático é a Ilha do Fundão, onde foi construído o principal campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A atual Ilha do Fundão, na verdade, era um arquipélago formado por 8 ilhas: Baiacu, Bom Jesus, Cabras, Catalão, Pindaí do Ferreira, Pindaí do França, Sapucaia e Fundão, que após a integração de todas elas passou a dar nome a esse aterro (CORRÊA e VIEIRA, 2016).
Alguns dos muitos aterros feitos na baía comprometem sensivelmente a circulação de água em certos pontos, como por exemplo o trecho entre a Ilha do Governador e o município de Duque de Caxias, um dos mais poluídos e assoreados da baía.
Para refletir
O assoreamento é um processo natural causado pelo depósito de sedimentos trazidos pelos rios. Entretanto, a ação humana pode interferir muito nesse processo. A poluição, a alteração do curso dos rios, o desmatamento da vegetação das margens, assim como os aterros realizados para a expandir a cidade aceleraram (e ainda aceleram) o processo de assoreamento desse ambiente, causando seu envelhecimento precoce. A quantidade de sedimentos que seria depositada naturalmente em um século está sendo depositada em um ano. Isso torna a baía cada vez mais rasa, dificultando a navegação e interferindo na renovação das suas águas, o que agrava o efeito da poluição nesse lindo, porém maltratado estuário. É preciso buscar formas de conciliar o urbano e o natural, principalmente se tratando de cidades costeiras em um contexto de crise climática.
É preciso ter mais atenção e desenvolver novas metodologias para tratar dos rios urbanos que promovem as trocas hídricas tão necessárias para a qualidade de vida das cidades costeiras.
Uma das maneiras mais rápidas e eficazes de estancar a poluição da Baía de Guanabara é atuar diretamente no maior vetor de condução de resíduos e esgotos urbanos que são os rios urbanos que nela deságuam. Tratar as águas poluídas, desses valões em que se transformaram os rios de outrora, seria uma estratégia complementar ao saneamento básico tradicional. O programa de Despoluição da Baía de Guanabara já demonstrou que o sistema de saneamento básico convencional é insuficiente para conseguir despoluir a baía. Portanto, sistemas de tratamento de rios urbanos são estratégias inovadoras que complementam os serviços de saneamento básico convencional. Isso se ainda quisermos conseguir ver em vida a recuperação da Baía de Guanabara.
Escrito por: Januário Campos de Amorim
Revisado por: David Zee
Referências Bibliográficas
ALENCAR, Emanuel. Baía de Guanabara: descaso e resistência. Editora Mórula Editorial e Fundação Heinrich Böll Brasil. Rio de Janeiro, 2016.Disponível em: <https://br.boell.org/sites/default/files/2021-09/2aEDICAO_BaiaGuanabara_WEB_25AGO.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2022.
BAPTISTA FILHO, L. S., BAPTISTA NETO, J. A., MARTINS, M. V., GERALDES, M. C. O Histórico Das Intervenções Humanas Na Baía De Guanabara (Brasil) e o Registro do Antropoceno em Quatro Unidades Sedimentares. Journal of Human and Environment of Tropical Bays 1:46-80,2020. Disponível em: <file:///C:/Users/janua/Downloads/49099-188987-1-PB.pdf>. Acesso em 14 jun. 2022.
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CORRÊA, Marcos Sá et al. O Éden perdido – com Elmo Amador: A Baía de Guanabara é provavelmente a coisa mais próxima do paraíso que houve na face da Terra. O geógrafo Elmo Amador conta como ela era e como ela se perdeu. O Eco, 2005. Disponível em: <https://oeco.org.br/reportagens/10941-oeco_15088/>. Acesso em: 14 jun. 2022.
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MARINO, Igor Kestemberg. Caracterização do Registro Sedimentar Quaternário da Baía de Guanabara. Curso de Graduação em Geofísica. Departamento de Geologia. Instituto de Geociências. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2011. Disponível em: <http://www.geofisica.uff.br/sites/default/files/projetofinal/monografia_igor.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2022.